segunda-feira, 29 de julho de 2013

Dilapidação do capital, capacidade ociosa e mau investimento dos recursos produtivos

por Jesus Huerta de Soto (extraído do livro Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos)


A consequência essencial da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva consiste, em última instância, na descoordenação do comportamento dos diferentes agentes econômicos.  De fato, os empresários começam a ampliar as etapas produtivas tornando-as mais intensivas em capital, ao passo que os demais agentes econômicos não estão dispostos a segui-los sacrificando o consumo e aumentando o volume global da poupança voluntária.  Este desajuste ou descoordenação, que tem origem numa agressão sistemática ao processo de interação social (constituída pelo privilégio concedido pelos governos aos bancos para que atuem com um coeficiente de reserva fracionária no contrato de depósito à vista), gera inevitavelmente um processo de crise que, mais cedo ou mais tarde, põe fim aos erros empresariais cometidos.  Contudo, o processo exige tempo e é inevitável que, quando termine, tenha havido equívocos significativos que se tornaram irreversíveis.

Os erros consistem no empreendimento e na tentativa de culminação de um conjunto de projetos de investimento que envolvem um alongamento e um alargamento da estrutura de bens de capital que, no entanto, não é possível concluir por falta de recursos reais poupados.  Além disso, uma vez que os recursos e fatores de produção originais se materializem em bens de capital, estes se tornam, em maior ou menor grau, inconvertíveis.  Isto significa que muitos bens de capital passarão a ter um valor nulo assim que se torne evidente que não existe demanda por eles, que foram elaborados por erro e que nunca deveriam ter sido produzidos.  Será possível continuar a utilizar outros, mas só depois de serem submetidos a uma remodelação dispendiosa.  É ainda possível que se consiga terminar a produção de outros, mas dada a complementaridade exigida pela estrutura de bens de capital, podem nunca chegar a entrar em funcionamento, se os recursos complementares necessários não chegarem a ser produzidos.  Por fim, pode também ocorrer o caso de ser possível reconverter os bens de capital por um custo relativamente reduzido, embora esses casos sejam, sem dúvida, uma minoria.[1] Nasce assim, como sabemos, um mau investimento generalizado (malinvestment) dos escassos recursos produtivos da sociedade e, por conseguinte, uma perda dos escassos bens, que tem origem na informação distorcida recebida durante um determinado período de tempo pelos empresários na forma de obtenção mais fácil de créditos a taxas de juro relativamente mais reduzidas.[2] Também é possível que muitos processos de investimento iniciados fiquem a meio, dado o abandono a que são votado antes de serem terminados, quando os promotores percebem que não poderão continuar a obter novos recursos financeiros necessários para seu término, ou quando reconhecem que, embora possam continuar a obter créditos, esses processos de investimento não têm viabilidade econômica.  Em suma, o mau investimento generalizado se manifesta na não utilização de muitos bens de capital, na não finalização de muitos processos de investimento iniciados, ou na utilização dos bens de capital produzidos de uma forma diferente da prevista originalmente.  Dilapida-se, desta forma, grande parte dos recursos escassos da sociedade, pelo que esta empobrece generalizadamente e vê o nível de vida diminuir em termos reais.

Muitos economistas interpretaram erradamente o fato de uma parte significativa dos erros cometidos se materializar em bens de capital já terminados, que, porém, não podem ser utilizados por falta dos correspondentes bens complementares de capital ou do capital circulante necessário.  De fato, muitos consideram que este fenômeno de "capacidade ociosa" é uma demonstração prima facie de que é necessário aumentar o consumo global para pôr em funcionamento a capacidade ociosa que foi desenvolvida, mas ainda não é utilizada.  Não notam que, como refere Hayek,[3] a existência de "capacidade ociosa" em muitos processos produtivos (mas, especialmente, nos mais afastados do consumo, como as indústrias de construção, telecomunicações, alta tecnologia e, em geral, de bens de capital) não prova, de forma alguma, que exista um excesso de poupança e que o consumo seja insuficiente.  Pelo contrário, é um sintoma de que não podemos utilizar o capital produzido por erro na sua totalidade, uma vez que a procura imediata de bens e serviços de consumo é tão urgente que não nos podemos dar ao luxo de produzir os bens de capital complementares ou o capital circulante necessários para aproveitar e pôr em funcionamento essa capacidade ociosa.  Em síntese, a crise acontece como resultado de um excesso relativo de consumo, ou, por outras palavras, de uma escassez relativa de poupança, que não permite terminar os processos iniciados, nem produzir bens complementares de capital nem o capital circulante necessários para pôr em funcionamento os processos de investimento e os bens de capital que, por qualquer razão, tenha sido possível terminar durante o processo de expansão.[4]

NOTAS

[1] Em princípio, e como regra prática, pode ser dito que quanto mais perto estiver do bem final de consumo, mais difícil de reconverter será um bem de capital. De fato, todas as ações humanas são tão mais irreversíveis quanto mais perto se encontrarem do bem final de consumo: uma casa produzida por erro será uma perda quase irreversível, ao passo que o uso dos tijolos é mais facilmente alterado, caso se torne evidente, durante a construção, que utilizá-los na construção da casa é um erro.

[2] Confirma-se assim que a teoria do ciclo não é mais do que a aplicação, ao caso particular do impacto da expansão de crédito sobre a estrutura produtiva, da teoria sobre os efeitos descoordenadores da coação institucional apresentada no meu livro Socialismo, cálculo económico e función empresarial (ob. cit., e em especial as pp. 111-118). À mesma conclusão chega Ludwig M. Lachmann quando afirma que o mau investimento é "the waste of capital resources in plans prompted by misleading information", acrescentando que, embora se consiga terminar muitos bens de capital, estes "will lack complementary factors in the rest of the economy. Such lack of complementary factors may well express itself in lack of demand for its services, for instance where these factors would occupy 'the later stages of production'. To the untrained observer it is therefore often indistinguishable from 'lack of effective demand'." Ludwig M. Lachmann, Capital and its Structure, ob. cit., pp. 66 e 117-118.

 [3] Nas palavras do próprio F. A. Hayek: "The impression that the already existing capital structure would enable us to increase production almost indefinitely is a deception. Whatever engineers may tell us about the supposed immense unused capacity of the existing productive machinery, there is in fact no possibility of increasing production to such an extent. These engineers and also those economists who believe that we have more capital than we need, are deceived by the fact that many of the existing plant and machinery are adapted to a much greater output than is actually produced. What they overlook is that durable means of production do not represent all the capital that is needed for an increase of output and that in order that the existing durable plants could be used to their full capacity it would be necessary to invest a great amount of other means of production in lengthy processes which would bear fruit only in a comparatively distant future. The existence of unused capacity is, therefore, by no means a proof that there exists an excess of capital and that consumption is insufficient: on the contrary, it is a symptom that we are unable to use the fixed plant to the full extent because the current demand for consumers' goods is too urgent to permit us to invest current productive services in the long processes for which (in consequence of 'misdirections of capital') the necessary durable equipment is available." F.A. Hayek, Prices and Production, ob. cit., pp. 95-96.

[4] "After the boom period is over, what is to be done with the malinvestments? The answer depends on their profitability for further use, i.e., on the degree of error that was committed. Some malinvestments will have to be abandoned, since their earnings from consumer demand will not even cover the current costs of their operation. Others, though monuments of failure, will be able to yield a profit over current costs, although it will not pay to replace them as they wear out. Temporarily working them fulfils the economic principle of always making the best of even a bad bargain. Because of the malinvestments, however, the boom always leads to general impoverishment, i.e., reduces the standard of living below what it would have been in the absence of the boom. For the credit expansion has caused the squandering of scarce resources and scarce capital. Some resources have been completely wasted, and even those malinvestments that continue in use will satisfy consumers less than would have been the case without the credit expansion." Murray N. Rothbard, Man, Economy and State, ob. cit., p. 863.

- - -

Jesús Huerta de Soto, professor de economia da Universidade Complutense de Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do liberalismo no mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário