segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Examinando os ciclos econômicos


por Daniel Marchi

E lá se vão mais de cinco anos desde a eclosão da crise financeira internacional, quando instituições bancárias norte-americanas começaram a enfrentar sérias dificuldades em função dos títulos hipotecários subprime. Um ano depois do início da crise, a 15 de setembro de 2008, tem-se aquela que é considerada a maior concordata da história americana, pedida pelo banco de investimento Lehman Brothers. Diversos setores da economia dos EUA foram afetados; as taxas de desemprego na maior economia do mundo atingiram níveis recordes em mais de vinte anos. Por tabela, toda a dinâmica de produção e comércio no globo foi afetada. A crise chegou e ficou.

Um efeito colateral dessa crise – positivo no meu entender – foi a retomada do debate acerca da ocorrência dos ciclos econômicos, períodos em que se observa notável expansão dos negócios seguida de declínio da atividade como um todo. Fenômenos esses que, sim, precisam de uma rigorosa investigação científica sobre suas causas. Pela simples observação, vemos que em economias minimamente regidas pelas leis do mercado é muito comum que empresas nasçam e outras vão à falência. Os empresários não são seres dotados de inteligência super-humana; podem cometer erros de avaliação de demanda, de gestão interna etc. É o sistema de lucros e prejuízos em funcionamento, nada mais. Agora, que estranhas forças são essas que levam muitos homens de negócios, amiúde atuando nos mais diversos setores da economia, a registrarem fraco retorno sobre seus investimentos ou mesmo resultados negativos?

Essa pergunta é ponto central dos debates envolvendo ciclos econômicos e ela não pode ficar sem resposta satisfatória. A título de exemplo, se você vai a um médico e ele diz que pouco sabe sobre sua doença, mas argumenta convictamente que conhece a cura, é bem provável que à sua frente esteja um perigoso charlatão. Essa é a razão dos bons profissionais sempre se apoiarem em exames. É a arte do diagnóstico. Sabem que é preciso conhecer as causas primeiras, para que elas sejam atacadas, e não apenas os sintomas. De fato, muitos dos economistas que aparecem quase todos os dias na TV e nos jornais apresentando as mais criativas soluções não têm a menor idéia de onde surgem os ciclos de negócios. Neste artigo tentarei abordar o problema, de forma sucinta, tomando como referencial analítico a Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Para uma abordagem mais detalhada, inclusive sobre outros tópicos da Escola Austríaca, recomendo a leitura do livro “Ação, Tempo e Conhecimento” do professor Ubiratan Iorio, entrevistado da última edição de Vila Nova. Não menos imperdível é o documentário “Fraude: Explicando a grande recessão”, facilmente acessível na internet.

Voltando àquela que foi descrita como a pergunta central: quais elementos - estranhos ao regime normal de uma economia de mercado - se fazem presentes para que muitos negócios entrem em decadência num espaço de tempo relativamente curto? Os candidatos naturais para se iniciar a investigação são a moeda e o crédito, pelo simples fato de perpassarem toda a economia. Um jovem empreendedor, um presidente de uma gigantesca corporação, aquele que intenciona comprar um imóvel, o estudante a procura de financiamento para seus estudos, todos estes recorrem ao mercado de crédito para iniciar ou ampliar seus negócios ou mesmo proceder a aquisição de um bem. Tomam recursos emprestados e pagam juros por isso. Da mesma forma, indivíduos e empresas que procuram valorizar seus excedentes (aquilo que não foi consumido) também procuram o mercado de crédito. Estes fornecem fundos que serão emprestados; como prêmio por isso, recebem juros, de acordo com cada modalidade de investimento que escolherem.

Prossigamos com essa imagem: fornecedores de fundos emprestáveis de um lado (os poupadores) e tomadores de empréstimos do outro. Suponhamos que numa determinada sociedade o esforço de poupança feito pelas pessoas é bastante grande. Elas são muito comedidas no consumo presente em prol de uma renda melhor no futuro. Isso implica que o montante de fundos disponíveis para empréstimos é relativamente abundante. Como conseqüência direta da lei da oferta e procura, as taxas de juros (o “preço” dos empréstimos) serão baixas. Juros baixos fazem com que investimentos de longa maturação se tornem viáveis. Recursos reais da economia são gradativamente direcionados dos setores mais próximos da fabricação de bens finais para os setores produtores de bens de capital, que serão utilizados nos negócios de maturação mais longa.

Percebam a harmonia presente na situação descrita. Os poupadores reduzem o consumo presente, aumentam seu esforço de poupança e esperam colher os frutos desse esforço no futuro. Por meio desse poderoso instrumento impessoal de coordenação, as taxas de juros, os empresários reagem de modo coerente, deslocando a estrutura produtiva para um esquema voltado mais para o longo prazo. Contrário senso, a mesma lógica se faz presente. Num cenário em que livremente as pessoas decidem por uma menor poupança (baixa quantidade de fundos disponíveis para empréstimos), os investimentos com maior prazo de maturação se mostram financeiramente inviáveis. A estrutura de produção da economia se adapta então para atender o desejo dos consumidores: consumir mais no presente.

Quando o mercado de crédito é alimentado pela decisão das pessoas em poupar, não existem razões que catalisem quebradeiras generalizadas. As mudanças ocorrem de forma gradual, com tempo suficiente para que os empresários ajustem o curso de suas firmas. Obviamente erros de avaliação ocorrerão, mas nada que detone processos insustentáveis. Com elevado ou reduzido esforço de poupança pelas pessoas, são elas que no final das contas determinam como será a estrutura de produção do sistema.

No entanto não é assim que as coisas funcionam. Se estivéssemos num consultório médico, nesse momento o distinto doutor diria aquela célebre frase: “sente aqui, preciso falar algo muito importante”. Atualmente, e isso vale para a esmagadora maioria dos países, aquilo que as pessoas poupam é diferente daquilo que o sistema financeiro disponibiliza como empréstimo. O segundo prato dessa balança é superior à primeira. Isso implica que as taxas de juros vigentes não se formam de uma interação de mercado, ou seja, carregam pouca informação acerca da relação consumo/poupança presente na sociedade. Como mostrarei abaixo, é o estado o principal responsável por danificar a bússola de todo o mercado, as taxas de juros.

O estado detém o monopólio da emissão de moeda e é portador de uma dívida monumental. Essas duas características permitem que seus títulos sejam carinhosamente denominados de “ativos livres de risco”, uma vez que pode tranquilamente recorrer ao recolhimento compulsório de recursos da sociedade (impostos) ou à pura e simples impressão de moeda para saldar seus compromissos. Nenhuma outra instituição ou indivíduo goza desse privilégio. E mais, o estado permite e dá garantias para que os bancos comerciais transformem seus depósitos à vista em “múltiplos” empréstimos, num montante muito superior àquilo que foi depositado. Trocando em miúdos, os bancos comerciais têm a faculdade de criar dinheiro a partir do... nada! Se o leitor que sobreviveu até este ponto do texto criar moeda a partir do nada, será enquadrado no Código Penal por falsificação de moeda. Quando o governo faz isso é política monetária ou está apenas operando dentro do sistema bancário de reservas fracionárias, no caso de um banco.

Sob esse arranjo – dirigido, baseado em monopólios e concessão de privilégios a determinados agentes do sistema financeiro – a sociedade é um ente passivo na determinação das taxas de juros. Qualquer decisão de política monetária ou alteração do percentual de reservas que os bancos devem manter é capaz de mudar ad hoc os valores dos juros praticados na economia. Considerando que o montante de crédito será superior ao volume poupado, os juros básicos estarão num patamar artificialmente baixo. Isso faz com que investimentos de longo prazo se tornem, também artificialmente, viáveis. Como os juros são uma espécie de prêmio para os que deixam de consumir, baixas taxas desestimulam as pessoas a pouparem, aumentado assim o diferencial entre poupança real e fundos para investimento.

Notem como a orquestra entra em desarmonia. Os empresários, mal orientados pelos juros manipulados, começam a investir em negócios de longo prazo. As pessoas ficam menos incentivadas a poupar, o que é equivalente a um maior direcionamento de recursos para o consumo (curto prazo). Com o passar do tempo, começa uma disputa por recursos reais (e finitos) entre os setores voltados para o consumo imediato e setores que reúnem investimentos de maior maturação. Da mesma forma, com o avançar dos anos, os negócios de longo prazo começam a se mostrar inviáveis pelo simples fato de não haver demanda para eles. Tais empreendimentos surgiram a partir de uma sinalização equivocada e financiados por poupança artificial, não pela escola dos consumidores interagindo livremente nos mercados. Quando a contabilidade dessas empresas, espalhadas pela economia, passam a registrar prejuízos, tem-se o início do fim de mais um ciclo econômico. O período de euforia provocado pelo crédito farto e irreal necessariamente é seguido pela amarga, mas necessária, recessão. É nela que os investimentos errôneos são corrigidos; capital físico e capital humano são realocados para a verdadeira demanda dos consumidores. Numa rápida observação, economias desreguladas são fundamentais para que o processo recessivo seja rápido e menos dolorido para a sociedade.

De novo no consultório, a situação ficará cada vez pior enquanto os sintomas, e não as verdadeiras causas, forem atacados. Não é com mais crédito artificial e investimentos dirigidos pelo estado que a economia retomará seu curso de desenvolvimento sustentável. De qualquer forma, é preciso ficar claro que os ciclos econômicos não são fenômenos inerentes ao livre mercado. Pelo contrário, são interferências no livre mercado que provocam os ciclos. Estaremos sujeitos às oscilações destruidoras de recursos enquanto o mercado de crédito e os juros forem manipulados. É fundamental que o monopólio da emissão monetária seja quebrado e que os bancos comerciais não criem recursos para empréstimos a partir do nada. A doença é profunda e demanda medidas drásticas.


* Publicado originalmente na 5a. edição da Revista Vila Nova, sob o título "Intervencionismo: o grande vilão causador de crises" (Janeiro de 2013).

Daniel Marchi é economista e membro-fundador do Grupo de Estudos da Escola Austríaca de Brasília. E-mail: danielmarchi@gmail.com

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