segunda-feira, 11 de julho de 2011

Os muitos eufemismos para criação de dinheiro

por Thorsten Polleit (originalmente publicado em janeiro de 2011)

Linguagem confusa, pensamento confuso

De acordo com os ensinamentos do filósofo grego Parmênides, a linguagem ilustra o pensamento humano (e o raciocínio). Linguagem confusa é, portanto, equivalente a pensamento confuso; pensamento confuso, por sua vez, provoca ações não intencionais e resultados não desejados. [1]

“Linguagem dupla” (doublespeak) – um termo que ganhou destaque por meio do trabalho de Eric Blair (1903-1950), mais conhecido como George Orwell – é uma forma notável de linguagem e pensamento confusos. O termo era, na verdade, derivado dos termos “novilíngua” (newspeak) e “duplipensamento” (doublethink), os quais Orwell usou em seu romance 1984, publicado em 1949 [2]. Enquanto estava sob a instrução supressiva do Partido, a mente do protagonista, Winston Smith,

mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultaneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica,repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência e então tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra “duplipensar” era necessário usar o duplipensar. [3]
Um eufemismo é uma forma de linguagem dupla: é um artifício retórico às vezes utilizado intencionalmente e às vezes não – um paliativo linguístico, o que representa uma distorção da verdade – em muitos casos empregado para evitar uma ofensa às pessoas. Na vida real, eufemismos podem ser utilizados por alguns para tentar legitimar ações que vão contra o interesse de outros. Nesse sentido, eufemismos representam uma “manipulação da linguagem” e uma “manipulação por meio da linguagem”.

Eufemismos na esteira da crise de crédito


Desde a eclosão da chamada crise internacional dos mercados de crédito, eufemismos têm tido grande destaque. Isso é válido, em particular, para os especialistas em política monetária, que devotam grande esforço para propagandear uma variedade de medidas políticas como sendo de interesse do bem comum, uma vez que elas supostamente combateriam a crise de crédito. Considere os seguintes exemplos:



1. A expressão “política monetária não convencional” retrata a ação do banco central a partir de uma perspectiva bastante favorável [4]. O adjetivo “convencional” significa “hereditário” e “obsoleto”, enquanto “não convencional” pode sugerir algo na linha de uma ação “corajosa” e “inovadora”.


2. Usar a expressão “política monetária agressiva” funciona do mesmo modo [5]. Por exemplo, ela geralmente se refere a um corte drástico nas taxas de juros oficiais em direção a níveis de baixa recorde, ou a uma grande elevação na oferta de moeda à luz de uma recessão que se aproxima, transmitindo a idéia de que os formuladores de política tomam medidas “ousadas” e “corajosas” para o bem comum.


3. O termo “quantitative easing” faz com que seja muito mais difícil, até mesmo impossível (para o grande público), desvendar o que tal política monetária realmente é – ou seja, uma política de crescimento da oferta monetária (dinheiro criado do nada), a qual, por sua vez, é o mesmo que uma política inflacionista. [6]


4. Falar sobre uma “política monetária de juros baixos” escamoteia o fato de que a política monetária empurra a taxa de juros de mercado abaixo da taxa natural de juros (a taxa de preferência intertemporal da sociedade), o que necessariamente leva a maus investimentos, em vez de inaugurar uma recuperação econômica.


5. “Neutralização do aumento da base monetária” é claramente enganador, já que um crescimento no estoque de dinheiro não é e nunca poderá ser neutro. Ele é necessariamente acompanhado por efeitos redistributivos – independentemente de os receptores da injeção de dinheiro adicional (que foi criado do nada) deterem esses saldos como “reserva legal” ou na forma de, digamos, depósitos a prazo[7].


6. Referir-se à "ampla liquidez" (como um fator que contribui para a "crise de crédito") tende a encobrir o fato de que os bancos centrais têm inflacionado a oferta de moeda (por meio da expansão de crédito de circulação bancária).[8] O termo "liquidez" tende a disfarçar o fato de que as condições monetárias desfavoráveis são um resultado da ação dos bancos centrais.


Um bom exemplo de um recente eufemismo no campo da política monetária foi o anúncio feito pelo Conselho Governamental do Banco Central Europeu (BCE), no dia 10 de maio de 2010, dizendo que ele iria:
intervir no mercado mobiliário da dívida pública e privada na zona do euro (Programa de Mercados Mobiliários) para assegurar profundidade e liquidez naqueles seguimentos de mercado que são disfuncionais. O objetivo deste programa é abordar o mau funcionamento do mercado mobiliário e restaurar um mecanismo de transmissão de política monetária apropriado. [9]
Tal política monetária pode ser vista como um subsídio aos preços dos títulos de alguns governos emitentes na zona do euro – ou seja, aqueles que são cada vez mais vistos como insolventes pelos investidores –, favorecendo, portanto, alguns emitentes (e investidores detentores desses títulos) à custa de outros.


Na prática, essa política será algo semelhante a uma política de preços mínimos para os títulos de alguns governos emitentes quando o banco central fizer compras que mantenham os preços de certos títulos acima daqueles que, de outra forma, teriam prevalecido.


Linguagem confusa, resultados não desejados


Com os especialistas em política monetária fazendo uso crescente de linguagem confusa, as forças corretivas contra políticas monetárias perniciosas são enormemente reduzidas. Isso acontece porque uma linguagem confusa – e seu resultado, pensamento confuso – faz com que se torne cada vez mais difícil para o público entender as conseqüências a médio e longo prazo das medidas adotadas; e tal entendimento é claramente necessário para resistir às políticas danosas.


O uso perpétuo de linguagem confusa pode resultar em conseqüências sociais que, na verdade, são desejadas por poucos. Considere o caso de uma progressiva expansão do governo. A razão pela qual o aparato estatal continua crescendo à custa do setor privado é, principalmente, devido à aquisição, por parte do governo, do controle total da produção de dinheiro. Detendo o monopólio da oferta de dinheiro, o governo pode elevar a oferta por meio da expansão de crédito sem base em poupança alguma. 


Com a criação de dinheiro, o governo pode aumentar – e realmente o faz – seus gastos muito além do montante que os pagadores de impostos estão preparados para entregar ao estado. Como resultado, mais e mais pessoas tornam-se dependentes dos gastos do governo (algumas até de forma voluntária), seja como servidores públicos, fornecedores do governo, ou destinatários de pensões, saúde, educação e segurança pública.


Cedo ou tarde a dependência da ajuda governamental alcança, e até ultrapassa, um nível crítico. Dessa forma, as pessoas verão uma política monetária de constantes aumentos na oferta de dinheiro como sendo mais favorável do que se o governo decretasse calote em suas dívidas, o que iria extinguir qualquer esperança de receber benefícios do estado no futuro. Em outras palavras, a política inflacionária, ou mesmo hiperinflacionária, será vista como a política do mal menor.


Graças à linguagem dupla dos especialistas em política monetária, a utilização de políticas monetárias que levam a uma alta inflação pode não ser percebida pelo grande público. A política monetária pode, portanto, ser desencadeada de forma que o público não concorde caso seja informado de suas consequências a médio e longo prazo.


Como resultado, há uma forte razão para temer que a confusa linguagem orwelliana e o pensamento confuso que ela produz pavimentem o caminho para a hiperinflação.


Thorsten Polleit é Professor Honorário da Escola de Finanças e Administração de Frankfurt.


Notas:


[1] Nota do Editor: as datas de nascimento e morte de Parmênides são objeto de debate. Ele provavelmente escreveu a maior parte de sua obra antes do ano 500 A.C.


[2] Note que o termo “linguagem dupla” não aparece em nenhum lugar na obra de Orwell, 1984.


[3] Orwell, G. 1984. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005, p. 36-37.


[4] A expressão pode ser encontrada frequentemente na mídia financeira. De qualquer forma, ela também é utilizada na literatura acadêmica. Veja, por exemplo, Curdia, V., Woodford, M. (2010), Conventional and Unconventional Monetary Policy. In: Federal Reserve of St. Louis Review, jul./ago., 92(4), p. 229–264. Deve-se notar que, no último artigo, os autores não apresentam nenhuma definição do que realmente querem dizer com “política monetária não convencional”. Uma definição de tipos pode ser encontrada em Bini Smaghi, L., Conventional and unconventional monetary policy, conferência principal no International Center for Monetary and Banking Studies (ICMB), Gênova, 28 abr. 2009: “As ferramentas não convencionais incluem uma grande quantidade de medidas destinadas a facilitar as condições de financiamento.” No entanto, tal definição basicamente inclui todos os tipos de medidas políticas:
Tendo ao seu dispor essas opções de possíveis medidas políticas– as quais não são mutuamente exclusivas – os formuladores de política monetária têm que definir, de forma clara, os objetivos intermediários de suas políticas não convencionais. Estes podem variar desde o provimento de liquidez adicional do banco central aos bancos ou até mesmo atacar diretamente a escassez de liquidez e spreads de crédito em certos segmentos de mercado. Os formuladores de política, então, têm que selecionar as medidas que melhor se ajustam àqueles objetivos.
[5] Veja, por exemplo, Bank for International Settlement, 80º Relatório Anual, 28 jun. 2010, p. 36.


[6] "Quantitative easing" é um crescimento na oferta da base monetária, uma política monetária adotada no caso de a taxa de juros oficial atingir zero porcento. O termo se tornou público pelo Banco do Japão, que adotou a política de quantitative easing, de março de 2001 a março de 2006. Veja, por exemplo, Ugai, H., Effects of the Quantitative Easing Policy: A Survey of Empirical Analyses, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 6, jul. 2006.


[7] Por exemplo, o presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, disse antes do Comitê de Negócios Econômicos e Monetários do Parlamento Europeu, em 21 de junho de 2010:
Como o objetivo do programa não é injetar liquidez adicional no sistema bancário, nós neutralizamos completamente a aquisição de títulos por meio de operações específicas de reabsorção. Como resultado, o nível existente de liquidez e as taxas do mercado monetário não são afetados pelo programa. Em outras palavras, a nossa postura de política monetária não é afetada, e não há riscos inflacionários relacionados a esse programa.
[8] A ampla liquidez tornou-se um termo muito usado. Veja, por exemplo, Bank of France Bulletin Digest, n. 158, fev. 2007, p. 1–2; e também Hirose, Y., Ohyama, S., Taniguchi, K., Identifying the Effect of Bank of Japan's Liquidity Provision on the Year-End Premium: A Structural Approach, Série de Documentos do Banco do Japão, n. 9, E6, dez. 2009.


[9] Declaração do BCE à imprensa: "BCE decide sobre as medidas para enfrentar graves tensões nos mercados financeiros", 10 de maio de 2010.


[10] Note que há uma relação reversa entre o preço do título e seu retorno: se a taxa de juros de mercado sobe (cai), o preço do título cai (sobe). Então, uma política de preços mínimos é essencialmente o mesmo que uma política de taxa máxima de juros.


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Tradução de Marcelo Aguiar Cerri e Raysa Sales

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