segunda-feira, 25 de julho de 2011

Digressões sobre a definição de dinheiro

por F. A. Hayek (capítulo 10 do livro Desestatização do Dinheiro)

Costuma-se definir dinheiro como o meio de troca geralmente aceito, mas não há razão para que, dentro de uma determinada comunidade, deva haver apenas um tipo de dinheiro que seja geralmente (ou pelo menos amplamente) aceito.  Na cidade austríaca fronteiriça com a Alemanha em que vivo há alguns anos, os comerciantes, bem como a maior parte dos outros empresários, aceitam, com a mesma facilidade, marcos alemães ou xelins austríacos, e é somente a lei que impede que os bancos alemães em Salzburgo efetuem suas transações em marcos alemães, da mesma maneira que o fazem a dez milhas de distância, no lado alemão da fronteira.  O mesmo se pode dizer de centenas de outros centros turísticos na Áustria, frequentados principalmente por alemães.  Na maioria deles, os dólares serão também aceitos quase que com a mesma facilidade que os marcos alemães.  Creio que a situação não é muito diversa em ambos os lados de longos trechos de fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá ou México, e provavelmente ao longo de muitas outras fronteiras.

No entanto, embora em tais regiões todos possam estar dispostos a aceitar várias moedas à taxa de câmbio do dia, indivíduos podem usar diferentes tipos de dinheiro para guardar (como reservas líquidas), visando a contratos de pagamentos futuros, ou para fins contábeis, e a comunidade pode responder da mesma maneira às alterações na quantidade das diferentes moedas.

Quando falamos em diferentes tipos de dinheiro, temos em mente unidades de diferentes denominações, cujos valores relativos podem oscilar uns em relação aos outros.  A oscilação desses valores deve ser enfatizada por não ser a única maneira de distinguir os meios de troca uns dos outros.  Também podem, esses valores, ser bastante diferenciados, mesmo quando expressos em termos da mesma unidade, pelo seu grau de aceitação (ou liquidez, isto é, na própria qualidade que os faz serem dinheiro), ou em termos dos grupos de pessoas que prontamente os aceitam.  Isso significa que diferentes tipos de dinheiro podem distinguir-se uns dos outros em mais de uma dimensão.

Não há distinção clara entre dinheiro e não dinheiro

Isso também significa que — embora habitualmente se aceite o fato de que existe uma clara linha divisória entre o que é e o que não é dinheiro, e a lei geralmente tente estabelecer essa distinção —, quando se trata dos efeitos causadores de eventos monetários tal diferença não é tão clara.  O que encontramos é, ao contrário, um continuum em que objetos com vários graus de liquidez, ou com valores que podem oscilar independentemente, se confundem um com o outro quanto ao grau em que funcionam como dinheiro.

Sempre considerei útil explicar a meus alunos que é pena qualificarmos o dinheiro como substantivo, e que seria mais útil para a compreensão dos fenômenos monetários se "dinheiro" fosse um adjetivo descrevendo uma propriedade que diferentes objetos poderiam possuir, em graus variados.  "Moeda corrente" é, por esse motivo, uma expressão mais adequada, uma vez que objetos podem ter curso, em graus variáveis, e em diferentes regiões ou setores da população.

Pseudo-exatidão, medida estatística

Defrontamo-nos, agora, com a dificuldade de explicar os fenômenos da vida econômica que ainda não foram bem definidos.  A fim de simplificar nossa explanação, evitando interconexões muito complexas que, de outra forma, se tornariam muito difíceis de acompanhar, introduzimos distinções nítidas entre os atributos dos objetos, atributos esses cujas diferenças, na vida real, não são assim tão nítidas, mas apenas graduais.  É o que ocorre quando tentamos estabelecer uma distinção muito clara entre objetos tais como bens e serviços, bens de consumo e bens de capital, bens duráveis e perecíveis, renováveis e não renováveis, específicos e versáteis, substituíveis e não substituíveis.  Todas essas distinções são muito importantes, mas podem ser muito enganosas se, na popular luta pela pseudoexatidão, tratarmos essas classes com quantidades mensuráveis.  Está aí uma simplificação que talvez seja ocasionalmente necessária, mas que é sempre perigosa e tem favorecido muitos erros em economia.  As diferenças, embora sejam importantes, não significam que seja possível separar, claramente e sem ambiguidade, essas coisas em duas ou mais classes distintas.  Frequentemente o fazemos e, muitas vezes, talvez, precisemos falar como se essa divisão fosse verdadeira.  Mas esse costume pode ser muito ilusório e levar a conclusões totalmente errôneas.

Ficções legais e teoria econômica deficiente

De maneira semelhante, a ficção legal de que há uma coisa claramente definida chamada "dinheiro" que se pode distinguir inequivocamente de outras coisas, ficção essa introduzida para facilitar o trabalho do advogado ou do juiz, nunca foi nem será verdadeira, na medida em que seja necessário fazer referência a coisas que produzem os efeitos característicos de eventos ligados ao dinheiro.  Essa ficção, contudo, causou muito mal, por conduzir à exigência de que, para determinados fins, só se possa empregar o "dinheiro" emitido pelo governo, ou de que deva sempre haver algum tipo de objeto único que possa ser considerado como o "dinheiro" do país.  Levou também, como veremos, ao desenvolvimento, na teoria econômica, de uma explicação do valor de unidades monetárias que em nada contribui para solucionar os tipos de problemas que pretendemos examinar aqui, muito embora apresentem pressuposições simplificadas que nos permitem algumas aproximações simples.

Para podermos prosseguir, será importante ter em mente que diferentes tipos de dinheiro podem diferir um do outro em duas dimensões distintas, embora não totalmente estanques: aceitação (ou liquidez) e o comportamento esperado (estabilidade ou variabilidade) de seu valor.  A expectativa de estabilidade evidentemente afetará a liquidez de um tipo particular de dinheiro, mas pode ser que, a curto prazo, a liquidez seja, às vezes, mais importante que a estabilidade, ou que a aceitação de um dinheiro mais estável possa, por algum motivo, ser restrita a círculos bastante limitados.

Significados e definições

Talvez seja esse o lugar mais conveniente para acrescentar afirmações explícitas sobre as acepções em que usaremos outros termos que ocorrem com frequência.  Terá ficado claro que, no presente contexto, é mais prático falar de "moedas correntes" do que de "dinheiros", não só porque é mais fácil usar o primeiro termo no plural, mas também porque, como vimos, o termo "moedas correntes" enfatiza um determinado atributo.  Também empregaremos a expressão "moedas correntes", talvez indo um pouco contra a acepção original do termo, de forma a incluir não somente papéis e qualquer outro tipo de dinheiro "que corre de mão em mão", mas também saldos bancários sujeitos a cheque e outros meios de troca que podem ser usados para a maioria dos fins para os quais se usam cheques.  Não há, porém, como acabamos de assinalar, qualquer necessidade de uma distinção pronunciada entre o que é e o que não é dinheiro.  Será melhor que o leitor permaneça cônscio de que temos de lidar com um conjunto de objetos que tem um grau variado de aceitabilidade, e que se confundem, na faixa inferior, com objetos que claramente não são dinheiro.

Embora frequentemente façamos referência às instituições que emitem moeda corrente simplesmente como "bancos", isto não quer dizer que todos os bancos deverão emitir dinheiro.  O termo "taxa cambial" será usado em todo o texto em relação a taxas de câmbio entre moedas; e o termo "bolsa de moedas correntes" (análogo a bolsa de valores), para o mercado organizado de moedas correntes.  Ocasionalmente, falaremos também em "substitutos do dinheiro", quando tivermos que examinar casos limítrofes na escala de liquidez — tais como cheques de viagem, cartões de crédito e saque bancário a descoberto — em relação aos quais seria arbitrário afirmar que são ou não são parte do meio circulante.

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Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais".

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